Wednesday, September 17, 2008
Parte I
Conto do século XIX, para (a Ana) ler nas viagens de comboio
Sou uma casa com três pisos – se não fosse eu a contar o que vou contar não se saberia o que tinha acontecido, porque no final não ficou aqui ninguém para escrever uma linha ou gravar um som. Quando me descobriram, no estado em que estava, abriram-me ao público – nem a múmia, nem os outros cadáveres os impressionaram. Tiveram que desenterrar alguns objectos escondidos, cuidaram de os limpar e envernizar, encobriram o cheiro com perfumes e revelaram as minhas ruínas.
Ajudaria se houvesse um calendário com um dia marcado para mostrar quando é que tudo começou. De qualquer maneira, penso que deve ter sido por volta de Maio, com sol e calor. Sou testemunha material do sucedido, mas mais do que isso, confesso que fui cúmplice.
No início tinha cinco quartos revestidos de papel castanho padronizado todo diferente, o chão coberto de alcatifas, duas grandes varandas, um jardim, duas casas de banho, uma cozinha, uma sala, corredores e um sótão. Alguns armários, mesas e o número de cadeiras básico, quatro bancos, louça, talheres, peças de cera, porcelana, vidro, madeira, que decoravam a sala – mais nenhum sítio tinha decoração. Uma casa típica da altura que tinha pertencido a um comerciante e que mais tarde foi arrendada.
Segundo a minha orientação, o sol atravessa-me diariamente. O sol é o elemento mais atractivo desta casa – dizem que irradio luz. Nos quartos entra uma brilhante luz matinal, na sala e na cozinha a luz do entardecer, pelas varandas recebo a luz mais forte.
Duas das moradoras, Aurora e Alva, tinham perto de vinte anos, eram típicas raparigas a viverem por conta própria numa pequena cidade portuária, profissionalmente ambiciosas, que saíam à noite, com amigos e romances, estudavam e liam, praticavam desporto e eram atentas à vida cultural da cidade. Conheceram-se aqui por casualidade e, antes que se imagine o contrário, não se davam particularmente bem. Em relação aos outros com quem compartiam o espaço, eram companhias agradáveis, prontas a partilhar histórias e cigarros, mas não se pode dizer que fossem afáveis. Alva contrastava com a personalidade de Aurora por ser tímida, observando com cuidado tudo ao seu redor. Aurora era impulsiva e com um comportamento que se podia considerar, para a altura, excêntrico.
Em Maio a Aurora saiu com um rapaz e a Alva com uma rapariga. Assisti à chegada das duas, por volta da mesma hora, já perto do amanhecer. Cruzaram-se na cozinha prontas para se deitarem. Já o sol se levantava aos poucos e em breve os raios entrariam sorrateiramente para inundar todo o espaço. Conversaram sobre si mesmas e acabaram por confessar as suas incertezas sobre o futuro. Entenderam que tinham muito em comum. Tinha-lhes sido até então impossível compreender e explicar certos acontecimentos e fenómenos pelos quais tinham passado e concluíram que precisavam de tempo e de espaço para se concentrarem – pelo menos em alguma coisa.
Aurora disse: “Com o sol que faz durante o dia, o que me apetece é não voltar a sair daqui!”, Alva concordou sorridente.
Não houve realmente, a partir do encontro entre as duas, um plano. O que aconteceu foi de improviso – até ao final. As duas em consenso propuseram aos restantes moradores a abolição do pagamento da renda, as obrigações de abrir e fechar a porta da entrada e decidiram dar novas funções aos compartimentos, nomeadamente aos espaços privados, permitindo, inclusive, que os corredores pudessem funcionar como dormitórios.
Os três moradores foram saindo por incompreensão das novas regras e por falta de simpatia pela nova ordem das coisas. Estavam confusos e deixaram-nas sozinhas para o início da construção de um puzzle de ligações que ocuparia os meus três pisos.
Aurora e Alva dialogavam em perfeita sintonia como se fossem a mesma pessoa com a vantagem de serem duas cabeças a funcionar (criativamente). Arrastaram a cama do sítio e amontoaram as peças de mobília – por baixo as maiores e mais pesadas, em cima as pequenas e leves. Levou-lhes dias a preparar o espaço e a esvaziá-lo tanto quanto era possível. Duas mesas redondas foram colocadas no centro da sala e num dos quartos, respectivamente, para que, durante o empreendimento, acompanhassem a luz natural.
Os livros e as bibliotecas rareiam neste século e não são acessíveis ao público em geral. As duas tiveram a vantagem de descenderem de famílias economicamente capazes de lhes permitir este luxo e por isso estavam habituadas a ocupar os seus tempos livres com leituras. Mas dos livros só lhes interessava agora a possibilidade de arrumar ideias e não os livros em si. Daí preferirem chamar cadernos às folhas de registos que preencheram compulsivamente durante meses.
Primeiro
Lista de cadernos que Aurora e Alva escreveram, desenharam e pintaram, para descrever e ilustrar assuntos escolhidos.
Caderno das regras
As regras eram importantes e escrevê-las era indispensável. Os “não” eram mais fáceis, daí a lista extensa. Alva disse: “Lá fora é tudo não, aqui também!”
Mas a listagem integrava apenas duplos “não”.
Não não fumar, não não comer fora das refeições, não não correr e saltar em casa, não não dormir até tarde, não não tocar órgão à noite, não não... Os “sim”, o que se permitiam fazer uma à outra, ficaram em branco porque não valia a pena dizer que sim a tudo.
Caderno dos animais conhecidos
Classificaram os conhecidos por espécies de animais fazendo uso de aguarelas sobre papel humedecido. Os rastejantes ficaram associados aos mais antipáticos. Os peludos para os que sentiam dó e piedade. Os mochos aos professores; as avestruzes às senhoras aprumadas; os peixes e os sapos para certos amantes. Os morcegos, os pinguins e as cegonhas ficaram em lista de espera.
Ao chegar ao final do dia, com chapéus de plumas e sombrinhas pequenas, enfeitaram as fêmeas que se pareciam com os parentes fêmeas, com roupa a condizer fizeram o mesmo aos machos e prepararam-se para um desfile de modas – uma das curiosidades foi como os meteram sentados nas cadeiras e como lhes dobraram as pernas, a outra foi como lhes empurraram cigarros para a boca. Confesso a minha perplexidade a assistir a tamanha crueldade ilustrada!
Caderno dos haveres
Lista de haveres: classificados por cor, ano de origem, material, textura, consistência, dimensão, função, som e cheiro. Registo por escrito, detalhado, do percurso de cada um dos objectos: do fabricante ao consumidor. Partiram a louça toda nisto, mas enfim, o mais importante era classificar. É de pouca relevância, mas a Aurora cortou-se no pé com um pedaço de um copo de vidro. Anotaram que o corte era importante se tivessem que organizar conteúdos para um caderno ou actividade relacionada com “acidentes domésticos”, “pés”, “feridas” e “vidros”.
Caderno dos poemas
Redacção de poemas cantados pelo vento e ouvidos por um canudo de papel. A começar pelo som mais agudo. Alva, que tinha melhor “caixa de ar”, repetia o som que ouvia enquanto Aurora tentava encontrar as notas certas para traduzir em pauta. O suporte eram os antigos lençóis da cama – ambas, por esta altura, teimavam em dormir no corredor como morcegos, daí os lençóis não servirem senão para isto.
Caderno do sol
Apontamento exaustivamente descritivo da influência do sol na temperatura, nas plantas, nas montanhas que se viam pela janela, na cor da pele, na abertura das pupilas dos olhos, no humor, nas cores e na água. Sem recorrer a nenhum desenho. Alva tinha a pele tão branca e suave que era quase transparente, por isso era ideal para fazer os testes de exposição solar numa escala de um minuto a oito horas seguidas. A pele de Aurora era morena e dura e não tinha qualquer peso no estudo.
Caderno dos pensamentos
Anotação de pensamentos comuns e divergentes, contraditórios, singulares, aborrecidos, impróprios e obscenos, violentos e agressivos. Os pensamentos que mereciam correcção foram escritos e logo apagados com a borracha.
Segundo
Lista de actividades desenvolvidas por Aurora e Alva
Actividade 1.
Açúcar em ponto pérola transformado em algodão doce. A cozinha foi convertida numa fábrica que produzia aquela matéria pegajosa que aos baldes era colada às minhas paredes. Atiravam-se à vez a ver qual delas ficava suspensa na zona mais alta. O objectivo era caminhar nos planos verticais, mas isso não chegaram a conseguir. Não tomaram banho depois.
Actividade 2.
Substituíram algumas das minhas paredes ainda livres por colunas gregas, aproveitando as vigas de suporte e recombinando os estilos clássicos conhecidos. Para além de poderem passar entre os espaços vazados ganhavam luz.
Actividade 3.
Converteram as escadas em rampas.
Actividade 4.
Furaram o telhado e os tectos, tipo peneira, sem que os buracos coincidissem, de modo a que não chovesse ou nevasse com demasiada abundância, apenas o suficiente para reproduzirem uma estância de esqui – daí as rampas.
Actividade 5.
Acenderam dezenas de velas num quarto para jogarem ao teatro das sombras.
Actividade 6.
Desviaram a água por tubos irregulares, abertos, para que se assemelhasse a uma corrente de água natural. Os tubos passavam no meio do chão e não junto à parede.
Actividade 7.
Desenharam-se uma à outra, no corpo, a respectiva silhueta com carvão. Ficaram boquiabertas por resultar, desta experiência, um desenho sem piada nenhuma.
Actividade 8.
Agrupamento de todas as superfícies espelhadas com um fio. De destacar nesta actividade: as duas passaram horas a olhar os reflexos das maçanetas das portas. O esmalte dourado sobre o volume, consideravelmente grande da maçaneta, mostrava uma nova dimensão do espaço. Rodaram a cabeça à volta da maçaneta e não pensaram em fazer o contrário.
Actividade 9.
Dos gatos fizeram sapatos. Os animais já estavam mortos e amontoados a um canto. Estavam prontos para ir, através do túnel até ao contentor do lixo do rés-do-chão. Mas antes disso e enquanto a pele ainda estava com bom aspecto, retiraram-na para a limpar. A vaidade deu-lhes coragem. Cada uma ficou com um par de botins e uma sacola a condizer.
Actividade 10.
Construíram um tanque num quarto do piso superior, tapando portas e janelas com pedaços de madeira e pedras e impermeabilizando com sebo de porco. Nadavam nuas horas a fio.
Actividade 11.
Como existiam infiltrações nos pisos de baixo, entretinham-se a contar gotas e a engoli-las.
Actividade 12.
Castigavam-se por diversão.
Actividade 13.
Esticavam o cabelo amarrando pesos nas extremidades. Assim, caminhavam com a cabeça erguida e a coluna muito direita. O cabelo muito para trás, arrastava-se parcialmente no chão e formava um ângulo de 45º com o plano horizontal.
Actividade 14.
Muitas vezes ficavam quietas e silenciosas. Alucinavam. Uma vez, Alva contou a Aurora que tinha visto dois cães a dançar muito apaixonados. Uma outra vez viu uma paisagem povoada de dinossauros e comboios gigantes.
É muito difícil lembrar-me de tudo. Passámos anos juntos nisto, sem dar conta das estações do ano e das festividades. Num domingo de tarde assolou-se sobre as duas um imenso cansaço. Aurora e Alva estavam pálidas e mal se moviam. Estavam subnutridas e não se lembraram de comer e não tinham tido nenhum plano que envolvesse satisfazer esta necessidade. A cozinha cheirava a leite estragado e a carne podre. Ainda restavam pedaços de alimentos rançosos e frutos fermentados em cima de uma banca de mármore. Aurora meteu serrim num prato, agarrou num pombo da janela e verteu o sangue em cima. Mexeu e comeu. Alva tentou fazer o mesmo, mas agarrou-se à barriga e vomitou. Desde então não se mexeu mais. Aurora calçou Alva com os seus botins de um dos gatos preferidos, sentou-a numa cadeira em posição de faraó, voltou-a de olhar para o sol do amanhecer e escreveu no chão – Alva Joyce.
Aurora ficou comigo ainda por muitos anos, alimentando-se dos pombos e das ratazanas. Executou, sozinha, actividades com dimensões modestas, completou alguns cadernos começados e deixou outros por acabar. Deixou-me à chegada dos novos senhorios, que por herança ficaram proprietários de metade da cidade. Naturalmente que nunca mais a vi. Ao sair escreveu o seu nome ao lado de Alva, completando-o com uma dedicatória – Alva Joyce & Aurora James aperfeiçoaram-se aqui.
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1 comment:
este texto é o que foi publicado no catálogo da ana jotta?
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