Wednesday, November 05, 2008











Porque me perguntam tantas vezes onde está o meu trabalho e porque razão não o mostro aqui, decidi apresentar uma performance colectiva que durou 24h. Espero que gostem. Toda a documentação da performance está no final do texto.


Chegámos à estação às 6h da manhã tal como combinado. Passamos antes pela padaria e pelo quiosque, alimentamo-nos de bolos e lemos as notícias do dia, mas não trouxemos nada connosco excepto agasalhos. Na estação vieram ao nosso encontro três amigos. Abraçamo-nos com força e trocamos palavras de emoção. Éramos um grupo que não passava despercebido a quem passava na rua, pelo barulho e pelos saltos que dávamos, meia volta, no ar. Avançávamos em direcção à praia. Estava uma manhã gelada com um denso nevoeiro, mas supus logo que em breve iriam aparecer os primeiros raios de sol. Chegados à praia retiramos as meias e os sapatos, arregaçamos as calças e percorremos a areia em direcção à mar. O nosso peso fazia a areia molhada ceder e deixava marca. Eu pus-me a andar ao contrário, tipo caranguejo, a ver primeiro o chão marcado de pegadas e segundo, ao levantar o olhar, todos os outros grupos, semelhantes ao nosso, que vinham na nossa direcção. Quando paramos já estava um sol brilhante. Levei a mão ao rosto para retirar um pouco de luz aos olhos e melhor poder escolher onde nos sentarmos. “Aqui, Ali, Aliii!” Acabamos por nos sentar onde a maioria apontou com o braço. Ali mesmo, distante das rochas e numa área onde era tudo o mesmo plano. A paisagem era uma total monotonia. A areia era clara e muito fina, lavada pelo mar, sem búzios, pedrinhas ou lixo. Para a frente a linha do horizonte impunha-se. O que víamos dividia-se em duas metades: uma amarela e outra azul, areia e mar. Não havia mais ninguém nas redondezas excepto o grupo que não parava de crescer. Estendemo-nos na areia às doze, no sol alto. Cobrimos os olhos com óculos escuros automaticamente. Vestíamos todos de preto – pareceria que íamos arder dentro de instantes. Éramos já cerca de umas quatro dezenas espalhados por ali.

Quando estávamos todos instalados tive que pedir a palavra porque o meu tom de voz não se afirma por si mesmo e só a custo e por uns breves instantes consegui falar num ambiente silencioso. “Caríssimos, estamos aqui para mais uma vez assistir ao pôr do sol em plena amizade e em comunhão de interesses, espero que estejam bem dispostos e que tirem partido do dia”. Riram-se todos às minhas custas e pela minha ingenuidade, bem sabia. Mas o que eu não podia permitir era que me estragassem o dia e começasse a pândega dos vadios que nunca mais tem fim. E contra mim falo, que mesmo que os censure não posso negar que somos todos muito parecidos.

Ora, quem éramos e o que fazíamos ali afinal de contas? - quantas vezes me forço a trazer à memoria esta pergunta, para que a resposta me tranquilize. Nós somos todos os pessimistas conhecidos, um círculo de descrentes: somos os que têm a bota ao pescoço e imploram por mais, os que estão sós e afastam a única pessoa que os aguenta (a mãe?), os que perdem tudo e continuam a jogar para se endividarem de seguida, os que se magoam e voltam a lutar, os que põem álcool na ferida, os que caem e que se atiram de novo, os que não são facilmente reconhecíveis...
Somos também os idealistas, os que vivem a distâncias incrivelmente longínquas de todos os outros, somos os que vêm só com um olho o que o olho humano não permite ver, os videntes das folhas de chá e os premonitores do futuro (assim acreditamos), os que são insuportáveis à sociedade porque pensam que a culpamos (e isso não é totalmente verdadeiro), os que morrem todos os dias e renascem por milagre (pensamos que não gostar de viver é uma criancice, de outra maneira tínhamos terminado com isto de uma vez), os que desistem muito rapidamente dos seus projectos (de vida) por nunca correrem conforme o imaginado, os que desconfiam que os outros nunca têm razão...
Somos então a perfeita harmonia entre o elogio da figura da vítima e a vingança do herói, somos a vitória e a decadência, somos, enfim, o melhor e o pior que se pode encontrar por aí e na verdade não nos esforçamos muito para que nos encontrem. De facto, não pensem que é fácil encontrar-nos. Por segurança vivemos por aí exilados em casas há muito dadas como abandonadas. Nunca saímos do mesmo sitio, não sabemos o que são outros sítios e o movimento físico não nos é essencial – para quê se viajamos tanto para preencher os nossos próprios compromissos nas esquinas da nossa imaginação?

É o milagre do sol, que se põe para renascer outra vez, que nos faz voltar ali e é aquela simbólica ida à praia que nos permite continuar durante um ano inteiro – sim, o círculo junta-se anualmente no Inverno e naquele dia. Não constituímos uma religião pagã ou acreditamos em algum mistério da criação, porque não é verdade que exista para nós qualquer mistério na criação e na religião. Para melhor explicar terei que usar palavras e todos os outros, que estiveram ali presentes que me perdoem por fazê-lo, desmistificando o segredo (!) e por falar em seu nome.

Estivemos toda a noite por aí, chegamos à praia cedo e quando marcaram as 14h, num relógio de sol improvisado com um galho espetado na areia, a reflectir numa lata de conserva que alguém tinha no bolso do sobretudo, de óculos de sol postos, virados de barriga para cima, estavam dezenas, já quase chegávamos a uma centena naquela praia. Algumas cabeças estavam pousadas nas costas, nos ombros, nos braços, nas barrigas, nas pernas dos outros. Alguns davam as mãos. A massa escura preta que formávamos era semelhante a piche colocado nas estradas. Eu abracei-me à Lara, ao Clóvis, à Michu, ao Rolando e cruzei os pés com um desconhecido.

A biografia dos meus amigos não me importa - de que linha descenderam, de que classe provinham, o nome verdadeiro ou até a origem do nome dado, era tudo irrelevante - estávamos ali, e muitas vezes ali regressaríamos. Se nos voltaríamos a ver, também não o sabia, pois ser um idealista pessimista é muitas vezes um estado, uma passagem, não está traçado no mapa e não é uma fatalidade. Chegadas as 16h - naquela altura do ano o sol é fraco e a luz amarela alaranjada, em nada se aproxima aos tons lilases do verão, meia hora depois o sol ia cair sobre o mar com rapidez – notamos, quanto nos é possível, no pouco que vemos da horizontalidade da nossa posição, que a massa se mexe e se ajeita. Lá no fundo, nas extremidades podem estar a fazer amor ou a cantar, a coçar o corpo que aos poucos se escalda da exposição prolongada ou a tomar cuidados para não desidratar - estes são movimentos exteriores que pouco se relacionam com o que se passa no interior de cada um. Às 17h, aproximadamente, levantaram-se alguns, um pequeno grupo muito jovem, vão até à água, talvez sejam do interior do país e poucas vezes tenham a oportunidade de provar o sal. Levantei a cabeça para os ver, apeteceu-me entreter o olhar. Deitaram as mãos ao mar e como se estas fossem pás, puxaram a água até molharem a barriga. Outros levantaram-se e correram até lá também e entraram na água sem medir a temperatura ou a força das ondas. Em outros anos foi mais tranquilo, mas não me levantei para os impedir, pois, não há regulamento e a minha tendência para o ideal das coisas pode perturbar o ideal dos meus companheiros. Ás 17h e 20m, metade da massa preta estava na água. Parecia que o mar estava sujo e a imagem diante de mim era preta e laranja. Os meus amigos estremeceram do sono profundo em que caíram e também se juntaram. Sentei-me e de braços cruzados sobre as pernas assisti a ondas pretas, que vão e vêm.

Às 18h, já não os reconheci. Estavam em contra luz. Nesse dia inauguramos uma nova modalidade – precipitamo-nos todos sobre o mar para assistir ao desaparecimento do sol. Conseguem imaginar? Somos centenas, vestidos de preto, numa praia perdida, entre a areia e o mar, de mãos dadas ou abraçados com força, totalmente molhados, com as roupas coladas, as ondas a baterem-nos violentamente, praticamente imóveis, com óculos de sol, para ver o sol a desaparecer.

Às 19h, só havia um resíduo da luz que nos acompanhou durante o tempo que lá estivemos. Como náufragos dados à costa arrastamo-nos dali e entramos na cidade. Mais um ano passaria de profundo isolamento, de dias claros e escuros, de agressividade para a qual ninguém encontrava justificação, de vontade de destruir ruínas, de queimar cinzas, ordenar ordens mal dadas e seguir o curso das coisas tal como o imaginávamos.

Eu fiquei um pouco para trás. O meu grupo atrasou-se porque um rapaz emocionou-se e não se queria levantar, enterrou-se na areia e disse que ninguém o tirava de lá. Eu não o reconheci porque os óculos ocupavam metade da cara (era muito jovem e com um rosto de criança), mas quando o arrastamos até ao cimento vi quem era. Sentamo-lo no mureto, sacudimos os pés de areia, metemos-lhe as meias e os sapatos. Então, uma das raparigas encostou-o contra o peito e embalou-o: nós acreditamos na descrença e desacreditamos nas crenças; temos a esperança de mil homens juntos.

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