Não há muito tempo, com um pequeno grupo de amigos, fiz uma visita guiada ao interior da carcaça de uma baleia de nove hectares, que se encontrava encalhada, e em decomposição, há já vários anos, nas margens do Rio Ave.
O guia começou por explicar como ali chegara uma baleia tão grande e de boa saúde e como depois tragicamente morrera.
Constava que, quando pequena, subiu o rio por engano, mas como era já demasiado larga não conseguiu sair e ficou presa. Foi então acarinhada pelos locais que a receberam com um colar de flores.
Entretanto, um antigo merceeiro das redondezas lembrou-se de aproveitar a existência de um tão volumoso e resistente animal para desenvolver uma fábrica, utilizando o seu corpo como receptáculo e explorando a sua gordura como energia. Alegou que era necessário acompanhar o progresso e apostar na indústria. Naturalmente que todos estiveram de acordo porque pressentiram que dali podiam retirar lucro.
O seu imenso interior começou então por sofrer profundas transformações: construíram-se máquinas gigantes propositadamente para aquele corpo e adaptaram-se mecanicamente alguns dos seus órgãos internos.
O animal alimentava-se com a ajuda da população: a matéria prima sólida que lhe servia de alimento vinha de longe, de outros continentes, num comboio de carga fretado expressamente para esse fim — chegaram mesmo a construir uma linha própria para o seu abastecimento! A combinação das diferentes matérias consumidas no processo de produção originava excedentes que o animal expelia na mesma água que bebia. Com o tempo, no local onde antes se refrescava só corriam fezes. O seu corpo foi crescendo e crescendo, até que se tornou insustentável uma existência em águas paradas.
Ao mesmo tempo, a mão de obra mais barata, que começava a surgir noutras geografias e que originava uma concorrência incomportável com o enorme animal, obrigava a população a procurar formas de sustento nos grandes centros urbanizados, longe daquelas paragens. Com esse abandono, a produção foi diminuindo e a razão de ser da grande baleia foi deixando de interessar à população. De saída, muitos foram os que deixaram marcas de tortura no animal, infligindo-lhe golpes profundos e irrecuperáveis.
Logo à primeira vista, pude constatar que o seu corpo estava já num avançado estado de decomposição, praticamente descarnado. Fomos aconselhados a caminhar nas suas entranhas com cautela e, ao mínimo sinal de cedência da sua frágil estrutura, devíamos recuar sem hesitação.
* * *
O início da visita fez-se pelos ossos da cabeça. Lá estavam os gabinetes principais, que foram planeados para servirem a vaidade e a ostentação dos proprietários, e para esconder a sua última finalidade — a de serem palácios de burocracia. Dali partiam as ordens para todo o corpo que chegavam longe, às suas extremidades, por intermédio de canais comunicativos eficazes. Sem retorno e sem reclamação.
Um papel activado naquele espaço só seria libertado quando tivesse passado por várias mãos que, à vez, lhe acrescentariam informação por camadas. As assinaturas e rubricas completavam o papel e tornavam-no num documento. Faltava apenas o carimbo com a data — “Despedido dia tal do mês que me convém e o ano é este”.
Os gabinetes estavam forrados com armários enormes, a fingir que eram paredes, cuja presença não se notava. Foi comentado que o trabalho que se fazia naquelas salas tinha uma natureza própria, não servia propriamente para ser visto ou notado por ninguém. Só nas salas de baixo, no ventre do animal, é que era tida como virtude a vocação para o trabalho.
Quem trabalhava nestes gabinetes nem as palmas das mãos tinha sujas. As marcas do trabalho revelavam-se nas mangas, às vezes manchadas de tinta permanente, e no suor nos colarinhos — que abundava na altura de rematar pelo melhor preço a matéria prima de qualidade superior, ou na altura de repreender algum insubmisso que havia lido os panfletos do sindicato.
Na boca e narinas do animal haviam portas que pareciam ter sido importantes na marcação do território — as originais eram imponentes, feitas em cobre batido, das quais se fizeram cópias em madeira pintada de cor escura. O desenho era o mesmo, mas as primeiras serviam os gabinetes principais e as outras os gabinetes secundários e os lavabos.
Ao lado da porta de um dos gabinetes principais, uma peça de plástico, parecida a um interruptor, permitia que se fizesse a comunicação, de dentro para fora, através de uma palavra que se acendia associada a uma luz: ora verde, ora vermelha, ora amarela com as palavras "livre", "ocupado", "espere um pouco". Já de fora para dentro a comunicação não era possível. Mas houve, certamente, quem quisesse fazer uso do mesmo interruptor – e dizer “não entro”. Para esses, estava reservado o "banco dos tristes"- o último sítio dentro do animal onde se ficava imediatamente antes de se ser expirado pelas narinas no alto da cabeça.
A traqueia era servida por um elevador que não funcionava tão bem quanto a escada, por isso pressume-se que a garganta estivesse estragada. Entre os vários andares do edifício existia um labirinto de túneis que serviam de passagem a cabos eléctricos mas com altura suficiente para possibilitarem a saída de emergência. Era, certamente, importante manter o fluxo activo com regularidade constante. O perigo é que estas passagens deixavam também entrar corpos estranhos, desestabilizadores, que frequentemente davam origem a infecções, dores de garganta e trabalhos desnecessários de erradicação de problemas.
Os pulmões ficavam no andar de baixo, no ventre da grande baleia, onde tudo estava exposto. O espaço assemelhava-se a uma peneira – a luz furava o espaço sem qualquer impedimento. Entre as diferentes secções não existiam paredes sólidas, nem portas, nem interruptores, apenas membranas feitas de vidro e armários baixos que serviam de divisórias para que se visse de uma ponta à outra do andar todos os funcionários.
Ao fundo, sobre um armário, estavam os cartões com a identidade de cada um, com entradas para informações básicas, mas com uma área a preencher com dados sobre o comportamento: a "secção impessoal". Pousado sobre uma estante, encontrava-se um livro de poesia entitulado "Flores de Pedra", e ao lado, numa secretária vazia de um dos chefes de secção, um Pateta de plástico, trazidos possivelmente pela última corrente de ar que por ali tenha passado.
O coração já não funcionava. Acabou por não ser visto por ninguém e comentava-se que talvez estivesse guardado numa cave ou escondido entre a cabeça e os pulmões. O guia parecia querer guardar só para si esse tesouro.
A cantina, construída no estômago do animal, estava limpa e em funcionamento — uma parte ainda saudável do organismo. A confecção e transformação dos alimentos resistia em apenas um quarto de toda a área. Aqui ainda havia vestígios de vida, como um órgão que entra em auto gestão e não precisa do cérebro para funcionar – que há muito estava morto. O cheiro no ar trazia consigo imagens e sons: milhares de pessoas a comer à mesma hora com avidez, a tilintar com os talheres e a sorver sopas. A arte de assobiar deve ter tido origem nesta cantina como tique nervoso em pequenos momentos de descontracção.
A partir deste ponto não havia mais solidez. Os ossos estavam a sofrer com a humidade, mostrando-se quebradiços e instáveis.
Os armazéns dispunham-se ao longo do grande aparelho digestivo. Havia um espaço imenso para caminhar. Afinal estava-se perante a maior baleia que alguma vez se havia visto. Espalhámo-nos por entre os diferentes armazéns. Era tudo oco. Calculo que a vida de todas as pessoas que povoavam este espaço fosse, como um eco, uma exacta reprodução das ordens provenientes dos escritórios.
O meu guia, sabendo da realidade do grande animal, sentiu-se inclinado a explicar-se: —“Os trabalhadores estupidificavam aqui e as conversas entre mulheres eram nojentas”.
Intestinos, recto e ânus
As oficinas ainda tinham lixo metálico, bocados de óleo, animais mortos e vestígios de ladrões. Os esgotos já não funcionavam, mas durante muito tempo todos os resíduos iam directamente para o rio.
* * *
A baleia que em tempos produzia têxteis — principalmente para produzir camisas de jovens, senhoras e cavalheiros, toalhas de mesa, tecidos padronizados para sofás e cobertores, para comercializar em Portugal, Inglaterra e no Ultramar — ia ser mumificada e disposta num Museu.
O nosso guia estava inconsolado. E eu assobiei.
IC, Julho/Novembro 2009
Friday, November 20, 2009
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1 comment:
este filme ve-se bem quando la estive enterraram-se as botas na pleura e fui parar ao lodo estomacal
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